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A culpa não é da mãe

A mídia foi tomada pelo caso do menino Henry, de 4 anos, que foi barbaramente assassinado por espancamento pelo padrasto com a anuência e/ou omissão de todos os que os cercavam, inclusive a mãe, que tinha sua guarda e era a cuidadora primária direta. E a culpa, obviamente, está recaindo sobre a mãe.

Eu não sou muito fã de ficar repercurtindo atos de violência contra as crianças, até porque o menino Henry é (infelizmente), apenas o caso da vez. Já tivemos outras crianças vítimas cuja história foi intensamente explorada pela mídia, como caso do Bernardo, da Isabela Nardoni, e outras que não recebem tanta atenção assim, visto que negras, como é o caso das crianças de Belford Roxo.

Estou trazendo então esse tema pra comentar sobre o comportamento padrão em casos de violência contra crianças que é o de apontar todos os dedos para a mãe. E não, eu não pretendo aqui advogar em defesa dessa mãe ou de nenhuma outra, mas antes comentar sobre os inúmeros problemas que decorrem de responsabilizarmos unicamente as mães sobre o cuidado e segurança dos filhos e como isso serve tão bem aos interesses de um sistema patriarcal.

Culpabilizamos exclusivamente as mães por qualquer evento que acontece com as crianças principalmente por conta da romantização da maternidade que vende a imagem de que toda mãe é naturalmente “santa”, “amorosa”, “pacífica”, “boa”. O mito da “mãe leoa” que protege (ou deveria proteger) os filhos a qualquer custo é na verdade um problema para as mulheres e crianças. Em primeiro lugar porque mulheres são pessoas. E a despeito da socialização feminina treiná-las sim para que sejam mais cuidadosas, amorosas e menos agressivas, elas — como qualquer pessoa — também são capazes de todo tipo de atrocidades, inclusive contra crianças.

Então, quando culpabilizamos mulheres por elas terem “falhado” na sua responsabilidade, por terem desviado da norma do que uma mãe deve ser, quando reforçamos o discurso da “mãe monstra”, nós cada vez mais naturalizamos essa a ideia de que toda mãe é naturalmente e necessariamente boa. E isto está bem longe de ser verdade. Maternidade não conserta caráter de ninguém.

O mito da “mãe leoa” também mais constitui uma enrascada que uma espécie de elogio para as mulheres porque faz com que toda a sociedade espere que mães estejam sempre à postos e atentas, a despeito de terem ou não condições para isso. E mais, faz com que toda uma rede que cerca cada criança, delegue para a mãe essa responsabilidade da proteção, e simplesmente lave as mãos.

Quando alguém encontra uma criança em risco, o que essa pessoa faz é buscar a mãe da criança para que ela resolva o problema, e não garantir que o risco a essa criança cesse. Ninguém considera que a mãe pode não ter condições ou mesmo vontade de proteger essa criança. Ninguém considera que a mãe pode ser a ameaça.

As pessoas não estão preocupadas em proteger crianças porque elas são tratadas como um problema que precisa ser tirado da frente. Um problema que mães causaram, ao tê-las. Então mães que assumam e resolvam. A sociedade age devolvendo o “problema” para que mães resolvam, afinal elas que resolveram transar e resolveram parir. E quando alguma coisa bizarra demais para merecer manchetes de jornal acontece todos ficam “abismados” como se um cotidiano das mais absurdas violências não fosse o comum de boa parte das nossas crianças, sob o nosso olhar complacente. E, obviamente, vão atirar pedras na mãe, que deveria ser onipotente, onipresente e onisciente.

O menino Henry morreu espancado. Morreu de tomar chutes de um homem adulto. Um menino franzino de 4 anos tomando bicudas no abdômen. Quem falhou foi a mãe? Não. Falharam todos que em algum momento perceberam que essa criança estava em perigo e simplesmente se eximiram de protegê-la, justamente por considerar que isso era “assunto da mãe”. Que acionaram a mãe e viraram os olhos sentindo que a missão de proteger uma criança acaba quando devolvemos a responsabilidade para quem é “de direito”. Porque somos uma sociedade que trata crianças como coisas, como objetos que pertencem aos pais. E que quando há algum problema é só “avisar ao dono”, e eles que resolvam. Mesmo que esses pais, que essa mãe, que essa unidade funcional familiar seja a principal fonte de violência contra essa criança.

O menino Henry estava sendo agredido há meses. É óbvio que ele pediu socorro de maneiras diretas e sutis para diversas pessoas. É óbvio que os sinais estavam ali. Não teve uma única pessoa que lançou um olhar mais atento para esse menino para notar que talvez tivesse alguma coisa profundamente errada? Como é que ninguém foi capaz de ouvir o choro, os pedidos de socorro verbais e não verbais, olhar as marcas, ver as mudanças de comportamento? Foi toda uma cadeia de cuidado que passava por mãe, pai, babá, avós, tios, escola, terapeutas, vizinhos… que simplesmente não notou, ou ignorou, ou considerou que isso era “um problema da mãe”.

Quantas crianças em situação de vulnerabilidade e risco de vida passam sob nossos olhos todos os dias e nós viramos a cara porque isso é um “problema da mãe?”. Por que nosso “compromisso” com o bem-estar de crianças se resume em localizar a mãe para culpá-la quando alguma coisa dá errado?

E quantas mães não estão completamente vulnerabilizadas, sem nenhuma condição física, emocional, psicológica, financeira de proteger seus filhos? E estão completamente abandonadas nessa tarefa? Quantas mulheres não estão indo além dos limites aceitáveis para a dignidade humana em nome de proteger seus filhos sob os olhares cúmplices da sociedade que acredita que nada que mulheres façam é demais porque “mães devem fazer tudo para proteger seus filhos?”.

Mães não tem que fazer TUDO para proteger seus filhos. Porque esse “tudo” para a sociedade inclui todo tipo de sacrifício e degradação. Porque a responsabilidade de proteger crianças é usado contra essas mulheres, que são chantageadas, são humilhadas, são usadas, e que quase sempre aceitam de um tudo em nome de garantir a segurança de seus filhos. Aceitam ficar em relacionamentos abusivos, aceitam violência doméstica, aceitam subempregos humilhantes, aceitam vender seus corpos. E tudo bem por isso, ninguém move um dedo para apoiar mulheres, vamos dar um troféu de “mãe guerreira” e uma sessão de apedrejamento público se alguma coisa sair errado. Ninguém liga pro bem estar dessa mulher e menos ainda com crianças.

Parem de apontar dedos para as mulheres. Deixem as mães em paz. Cuidar de crianças é compromisso de todos. Não só das nossas crianças, mas de todas as crianças. Crianças são pessoas em formação, vulneráveis e precisam de proteção 24 horas, e em uma sociedade que não fosse tão predatória, isso seria oferecido a ela em todos os espaços. A despeito da presença dos pais.

Em uma sociedade que realmente se preocupa com suas crianças, Henry, Bernardo, Isabela Nardoni, os meninos de Belford Roxo, e mais tantos outros casos “famosos” e anônimos não existiriam. Mães não estariam acuadas, desesperadas, com a tarefa solitária de defender seus filhos. Mães seriam vistas como pessoas, que falham, e por isso também precisam de ajuda, orientação, apoio. Mães também seriam observadas se sua maternagem é realmente protetiva ou violenta. E principalmente mães não seriam culpabilizadas porque quando algo acontecesse com uma criança, TODA a sociedade, todos nós, sentiríamos esse peso dessa culpa. Sentiríamos que falhamos. Como pessoas, como grupo, como comunidade. Como seres humanos.

Cada vez que uma criança sucumbe, todos nós falhamos. A culpa é nossa.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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