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Crianças são pessoas

Você já parou para pensar que crianças são pessoas? Sei que essa pergunta parece meio despropositada mas nós costumamos pensar, agir e tratar crianças como se fossem uma categoria a parte, uma outra espécie situada mais ou menos entre humanos e animais. Não tão racionais quanto humanos, não tão irracionais quanto animais. E talvez muito mais próximo dos animais que dos humanos.

Não tratamos crianças como pessoas. Inclusive existe amplamente disseminada a ideia de “treinar” um bebê nas suas diversas habilidades (dormir, comer, usar o banheiro), usando técnicas que partem do mesmo princípio do adestramento de cães. Além de “ensinar” disciplina através de castigo e violência. Dessa última, inclusive, cães talvez escapem com mais facilidade.

Não lembramos de como éramos no início da vida. O que pensávamos exatamente, o que sentíamos. Tudo é muito nebuloso na memória. Então crianças são um território desconhecido cujas ações costumam ser interpretadas com a mesma régua usada para lidar com pessoas adultas. E isto é uma ótica completamente equivocada pois lhes atribuímos intenções que são incapazes de ter. Crianças não manipulam, desafiam, provocam, pelo menos não no sentido clássico que estamos acostumados a lidar. Elas estão o tempo todo fazendo experiências, testando o mundo, as pessoas, a realidade a sua volta.

Crianças são seres em formação que estão apreendendo e aprendendo o mundo.

Mais importante que uma criação com apego, cuja cartilha vai se tornando cada vez mais difícil de seguir, é preciso praticar uma criação com empatia. Com um olhar de empatia, um olhar que tenta os compreender sentimentos e emoções, e procura experimentar de forma objetiva e racional o que sente o outro indivíduo, conseguimos mudar completamente a forma de nos relacionar com os nossos filhos, e com qualquer criança. Mas para isso é necessário que primeiro se trate a criança como o que ela é: um indivíduo.

Assim, num exercício, perceba por exemplo que um recém-nascido é uma PESSOA que acaba de chegar num lugar absolutamente estranho. Ele passou várias semanas dentro da mãe, num universo aquático, cheio de sons, sabores, luzes. Era como um peixe que vivia no grande oceano chamado útero. Aquele era o mundo dele. Ele ouvia vozes, coração batendo, vísceras trabalhando. E de repente ele está em outro lugar, completamente diferente. Ele está em outro meio físico, não aquático, agora ele respira ar, precisa engolir alimento. Antes tudo funcionava automaticamente, imediatamente, organicamente. Agora, quando ele sente fome, frio, calor, dor, medo, ele não consegue fazer nada. Exceto gritar.

É como se hoje você estivesse sentado tranquilo e confortável no seu sofá e em seguida fosse transportado para um planeta alienígena selvagem, onde todos voassem e suas capacidades físicas não lhe trouxessem nenhuma possibilidade de adaptação imediata e você não soubesse como sobreviver e nem como se comunicar. Você também gritaria um bocado, acredite.

Um bebê não chora muito porque quer manipular alguém. Ou porque é mimado. Ou porque é mandão. Um bebê chora assim porque o mundo realmente é coisa demais de uma vez só. Se imagine nesse lugar. Tenha empatia. Ele quer se sentir seguro. Quer um ponto de referência. Ele não tem a menor idéia do que aconteceu com ele. Você sabe que ele nasceu. Ele não. O que pra você é um nascimento para o bebê é uma espécie de morte: morte do mundo seguro onde ele vivia para um mundo novo, hostil, e que ele está aprendendo a conhecer. Isto é aterrorizante, convenhamos.

E isso não se esgota apenas enquanto bebê. A criança vai se desenvolvendo muito rápido, descobrindo o mundo e se descobrindo. Imagina o que é de repente aprender a comer comida, mastigar, andar, falar. Nos 3 primeiros anos da vida de um bebê as mudanças são tão brutais, aceleradas, desnorteadoras. Se até os pais têm dificuldade de lidar com isso, imagina para a pessoa que está vivendo. Não dá pra exigir que ela tenha as mesmas habilidades, as mesmas capacidades, a mesma maturidade para lidar com as coisas que os adultos, teoricamente, deveriam ter. Elas são seres agitados, curiosos, imaginativos. Imagina como você se sentiria se nesse mesmo planeta alienígena que eu usei como exemplo, você estivesse aprendendo finalmente a voar? Você ficaria sentado quietinho em um canto, ou você iria querer explorar os ares? Conhecer as nuvens?

Crianças não são uma outra categorias de seres humanos que por estarem sob tutela e cuidado de adultos são hierarquicamente inferiores e devem se submeter a tudo. Eu sugiro inclusive um exercício interessante: de que se pensem em crianças como um “adulto” em habilitação. Que ainda está se desenvolvendo, aprendendo a usar todas as suas potencialidades, físicas, emocionais, laborais, para transitar pelo mundo. Assim como muitos adultos em reabilitação. E aí eu deixo a pergunta: você bateria em um adulto em reabilitação? O deixaria chorando, gritando, para “aprender” algo? Você forçaria um adulto em reabilitação a adquirir independência a todo custo, mesmo que ele não estivesse preparado? Você declararia repulsa a presença desse adulto em lugares públicos? Você diria “odeio adultos em reabilitação?”.

Esse adultismo que é a tônica da nossa sociedade nos torna prepotentes e um tanto cruéis. Todo mundo já foi criança. E um dia seremos idosos. Um outro jeito de ser criança de novo, caminhando mais uma vez para a fragilidade física. É um ciclo que todo ser humano passa, e é necessário um tanto de ajuda mútua para fazer essa travessia. Sobretudo, essa tal de empatia que tanto falamos. De pessoa para pessoas.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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