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Sobre o pai que não estava lá

Sempre que chega o dia dos pais eu quero falar com todos os filhos que cresceram com essa sensação de o que o pai não estava lá. Que foram diretamente atingidos por essa organização familiar estranha onde o pai é uma figura distante, por vezes misteriosa, muitas vezes agressiva. Aquele homem que fala pouco, que não chora, que tem hábitos rígidos e ar taciturno. Que consegue o silêncio familiar apenas com um olhar.

Quantas famílias não foram e são governadas por essa figura clássica de homem. O PAI. Que chega tarde e cansado do trabalho, que a mãe coloca a comida no prato, que a casa precisa estar limpa, que o ruído precisa cessar porque ele quer descansar enquanto vê TV.

O PAI. Que grita com a mulher — sua mãe — mas não deixa faltar nada em casa. E que sua mãe sente-se agradecida porque “ele é honesto”, “ele é bom pra mim”, “pelo menos ele não bate”, “pelo menos ele não bebe”, “pelo menos ele não tem outra família”. Ou nada disso. Às vezes é uma gratidão surda, sem motivo, em meio a tantas violências, que só parecem menores porque o lar de origem da sua mãe era pior.

O pai. Tão diferente da figura que você vê nos filmes e nas novelas. Um homem que pouco sorri, que você não sabe bem o que sente, que está presente mas não estava lá.

Porque sua mãe estava lá. Na porta da escola, cerzindo suas roupas, escondendo seus pequenos malfeitos, te protegendo de pequenas e grandes surras. Descabelada, vendo novela, fazendo bolos. Sua mãe estava lá, lavando, passando, cozinhando, criando filhos, todos os dias, tão iguais. E muitas vezes ainda trabalhando fora, chegando cansada, chegando antes, fazendo tudo. Sua mãe estava lá, sem saber se era feliz, sem saber se era amada, sem saber se era prazer, sem saber se era vista, se era gente. Cuidando de tudo, de você dos seus irmãos.

E seu pai também estava lá. Embora você pouco o visse, embora você pouco se lembre, porque pensando bem você pouco o conhece. Talvez um dia descubra histórias sobre ele que vão te surpreender. Revirando albuns da época em que existiam retratos. Talvez descubra coisas que se orgulhe e tantas outras que a envergonhe ou amedronte.

E suas lembranças serão boas, ainda que difusas, afinal, ele é seu pai não é mesmo? Um pai fazendo o que bons pais devem fazer. Ele nunca deixou você passar fome afinal, nem te faltou um teto. Não importa se você não tem certeza se é só isso que pais deveriam fazer. Não importa que ele saiba muito pouco sobre você. Que a relação que vocês têm é muito mais uma fantasia que você criou para suprir uma falta que você nem sabia que tinha. E que quando você lembra de algo semelhante a carinho, afeto, presença e até sorriso, seja tudo sobre sua mãe. Porque era ela que realmente estava lá.

Eu quero dizer a esses filhos que a socialização para masculinidade transformou esses meninos em homens que não conseguem dar-se por inteiro, que não conseguem mostrar-se por completo, que é impossível pensar num envolvimento amoroso, presente, honesto, íntegro, com o tipo que homem que homens aprendem a ser. E isso não é para que você “perdoe” o seu pai, é só pra dizer que essa presença ausente é a regra. Que a família margarina que vemos nas novelas e filmes tem um bocado de ilusão. Que somos alijados de estabelecer conexão porque se aos homens for permitido se abrirem, se mostrarem e se conectarem ele não darão conta de cumprir sua tarefa de explorar e subjugar mulheres. Que esse é o preço que todos pagamos. Essa presença ausente, extirpada de alma, de brilho nos olhos.

E está tudo bem se você sente que quem estava lá por você sempre foi a sua mãe. Você não tem que sentir gratidão por seu pai apenas porque ele ficou e tudo bem se você já sentiu que sua vida teria sido melhor se ele tivesse ido. Saiba que isso é muito comum, é sistemático, tudo bem conversarmos sobre isso, isso é um efeito colateral de uma coisa chamada patriarcado.

Onde há dominação não há como repousar o amor.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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